29.7.09

A neta do Seu Antônio Coruja

Apesar de não ter tido muito estudo formal, meu avô sempre foi uma pessoa bem informada. Além de muitos livros, ele mantinha o hábito (e a paixão) de ler jornais. Sempre lembro das pilhas e pilhas de jornais e revistas que ele lia e guardava. O processo de leitura obedecia normas: divide em cadernos, primeiro o principal com política, economia, geral e polícia, depois o de cultura e por último o que tivesse no dia, incluindo os classificados. Depois de ler, ia tudo pra uma pilha na sala, que no final da semana era transferida pra uma paça que ele tinha com o "arquivo".

Muitas vezes minha avó se irritava com a pilha e quase implorava pra que ele jogasse um pouco fora. Com o tempo, ela começou a jogar fora a revelia, depois o pessoal que trabalha com reciclagem começou a aparecer e os jornais começaram a ter um fim politicamente correto. Mas o vô nunca ficou satisfeito de ter que se desfazer dos jornais velhos. 

Pois é, eu sou neta do Seu Antônio Coruja. Uma versão mais desorganizada, é verdade, mas tenho certeza de que sai aos meus: não degenerei. Quando eu trabalhava no jornal, todos os dias eu pegava o meu exemplar pra levar pra casa, mesmo tendo lido o caderno principal todo no jornal. O meu processo de leitura em casa, por isso, era exatamente o contrário: começava pelo suplemento de cultura, depois os outros do dia, excluindo os classificados, e por último dava uma olhada no caderno principal de novo pra ver se eu tinha deixado alguma coisa passar. Aos poucos, fui criando a minha própria pilha de jornais. Nunca consegui fazer uma pilha de respeito como a do meu avô, com jornais de muitos anos anteriores. Infelizmente, minha casa não tinha espaço para tanto e, como virei gente grande em outra época, já comecei com o descarte politicamente correto: direto para a reciclagem.

Com o tempo as coisas começaram a mudar. Pra começar, eu me mudei. O lugar é longe, a mudança foi radical. Com a mudança, vem a necessidade de desocupar espaços. O mesmo hábito que eu herdei do meu avô se aplica a qualquer tipo de papel: documentos, notas, cadernos, livros, anotações de palestras, provas de livros, revistas, provas de diagramação de revistas, bilhetinho, tudo o que você puder imaginar em matéria de celulose. Apesar da tristeza, e da certeza de que um dia vou precisar de alguma coisa que eu joguei fora, a limpeza foi feita e eu me mudei.

Hoje, num momento de bobeira, fiquei pensando: quem será que me mandou o primeiro email no gmail? Pra quem será que eu mandei o primeiro email? Resolvi mexer. O primeiro email recebido foi a confirmação de participação em uma pesquisa da abril, no dia 10 de maio de 2004, o primeiro enviado foi para a turma de amigos da cidade, avisando que a partir daquele dia os emails deveriam ser endereçados só ao gmail. Começando a olhar mais vi amores que se foram, amigos que não vejo mais, conquista de emprego novo, namoro nascendo, felicitações de aniversário, mimimis, fotos, fotos, fotos, muitas fotos.

Os anos são outros. Talvez não seja com jornal, mas a neta do Seu Antônio Coruja tem sim a sua pilha de anos, e muito bem conservada.


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9.7.09

O significado (ou a falta de ) das palavras

Sempre depois de uma aula de chinês a minha cabeça sai fritando. Um pouco porque fazia muito tempo que eu não estudava chinês, um pouco porque é uma professora particular nova (e eu tenho meus bloqueios, preciso me sentir confortável com a pessoa pra sair cometendo erros sem surtar), um pouco porque eu preciso falar (posso passar horas estudando caracteres faceira, odeio abrir a boca) e muito porque é um idioma difícil pra chuchu.

Mesmo assim eu curto bastante quando estou estudando. Curto a lógica (ou a falta de) do idioma. Algumas vezes é uma lógica ingênua, quase infantil, e por isso fofinha. Well, outras vezes é de pensar “what the fuck?”, mas em geral é fofo. Fora quando fica até meio poético. Olha só.

Amor é ai, que se escreve 爱 hoje em dia. Em chinês tradicional (e também japonês) se escreve 愛. Ou seja, tiraram uma parte do caractere para simplificar a escrita. Até aí, sem problema. O amigo está dentro do amor, pois uma das partes que o compõem é 友, que significa amigo. Então que no amor precisa amizade. Mas daí algo aconteceu, não sei se foram as guerras, se foi o comunismo, mas quando simplificaram a escrita tiraram o coração do amor. Como? Aqui neste愛 dá pra ver uma partezinha espremida, 心, que significa coração. Triste, mas na China de hoje o amor é sem coração. Ainda falando de amor, ou melhor do爱, uma das palavras que eu mais gosto é marido-esposa (serve para os dois), que é airen 爱人. Te ligou que o amor está entre os cônjuges, não? O outro caractere que forma a palavra é ren 人, que significa pessoa. Pessoa amada. Fofíssimo, não? Se tem uma coisa que eu me surpreendi aqui, e ainda me surpreende, é a quantidade de casais que briga na rua. Quando eu falo briga não me refiro a bate boca, é porrada mesmo. O cara bate na mulher e a mulher bate no cara em qualquer lugar: na rua, no shopping, no bar, na frente do trabalho. Acho que o problema todo com a chinesada é que tiraram o coração do amor. Só pode.

Falando em coração (esse心 coração) me lembrei de outro. “Você” em chinês é 你, ni. Pois a forma respeitosa de dizer você é 您, nin. Reparou que ali embaixo tem o caractere de coração?Então se você chama alguém com respeito, chama com o coração.

Outra coisa que eu e minha professora ficou explicando foi no 女, que se lê nü (faz biquinho pra falar) e se refere à mulher, ao gênero feminino, e todas as palavras onde é necessário diferenciar o gênero, ele está presente. Apesar da cultura machista, por exemplo, o “bom”, que se escreve 好, tem um toque feminino. Outro que dá uma levantada na bola na mulherada é “segurança”, an 安 . Segundo a minha professora aquilo ali em cima do caractere é uma representação de casa, ou seja, casa que tem mulher significa em chinês, literalmente, segurança. Curtiu?

Agora tá rolando toda essa tensão em Xinjiang, província no noroeste da China que faz fronteira com o Paquistão e cuja população é, na maioria, muçulmana. As questões étnicas por trás disso são muitas, mas gostei de uma observação que escutei sobre o assunto. Vocês sabem que os muçulmanos não comem carne de porco, né? Isso me lembrou um dos caracteres com a lógica mais sem sentido para mim. Well, suíno por essas bandas se escreve 豕. Lembra da parte de cima do segurança, que a profe disse que era uma representação de casa? Então que se a gente pegar o suíno e colocar aquela partezinha em cima, o caractere fica assim 家, certo? O problema é que isso, em chinês, se lê jia e significa casa, no sentido de lar, ou família. A conclusão da pessoa foi: como eles não vão ficar brabos se colocaram o porco na família? Esse caractere é tão sem sentido quanto a violência dos distúrbios do último domingo.

Bom, mas isso é assunto pra um outro texto, num outro dia.